sábado, 12 de julho de 2008

As mulheres morrem ao sábado

Não bem, mas quase. Há uns anos, enquanto me demorava pelo jornal, um título captou-me a atenção: "Os Homens Morrem ao Domingo". Que bonito - pensei. Foi apreciação de pouca duração. É que, ao contrário da minha fantasiosa previsão, que já se ía perdendo com a ideia de um lindo romance, ou quiçá poema, o artigo tratava-se efectivamente de uma mera estatística. Sim, estatisticamente os homens morrem mais aos domingos. E porquê? Qualquer coisa relacionada com o futebol, as lojas fechadas e a aproximação da segunda-feira. 
Adiante, ou nem por isso, voltemos ao sábado...e às mulheres.

Num sábado, infectado e acima de tudo afectado, o mesmo sábado em que me proponho afastar-me do mundo, o mundo veio até mim. Sentei-me no sofá, acendi um cigarro, folheei o Expresso, e eis se não quando me deparo com uma crítica ao novo livro da Margarida Rebelo Pinto. Ainda hesitei, é que, convenhamos, num dia destes não é sensato, muito menos saudável, embarcar em aventuras deste género. Mas enfim, uma outra senhora - não muito diferente em tipologia - alvitrou "Bem Aventurados os que Ousam". E assim foi, ousei. 

O resultado foi totalmente inesperado. Costumo dizer, a propósito de coisas a despropósito, que seria hilário se não fosse trágico. Neste sábado engoli o meu cliché idiomático: é profundamente trágico mas, muito mais que isso, é visceralmente hilariante.

E aqui fica, na íntegra (porque é impossível haver critério de selecção quando tudo é "seleccionável"), a obra prima que destrói toda e qualquer apatia, e que gerou - pelo menos que já tenha conhecimento, mas estou certa que serão muitos mais - três fans instantâneos do senhor Rogério Casanova.


|| Um Padrasto decente para Gongas

A vida não é fácil para as mulheres de Português Suave. Atormentadas à partida pelos habituais albatrozes de serviço (os "homens", a prosa), elas têm ainda de negociar os seguintes obstáculos: desgostos amorosos, mentalidades conservadoras, um país estagnado, uma sintaxe catatónica, um enredo à beira do colapso e a distinta possibilidade do leitor perder os sentidos a qualquer momento, deixando-as a lutar sozinhas. 
Grande parte da história é narrada por Leonor, que se encontra num ponto de viragem: "Cheguei a um beco sem saída e quando me senti no fundo, olhei para cima e disse para mim mesma: agora vais ter de subir a puta da montanha."
Abandonada por Pepe, "com quem nunca devia ter casado", Leonor vive sozinha com o seu filho Gongas, que lhe "forra a vida a papel-de-seda". O Gongas precisa de um padrasto e Leonor precisa de sexo, porque "o sexo afasta a morte". Poderá Luís Maria preencher estas lacunas? Às primeiras impressões, parece o candidato ideal: "Vestia-se bem, cheirava a Davidoff, não usava meias brancas nem tinha mau hálito". Este soberbo naipe de características oculta um lado significativamente menos soberbo. O idílio é breve; Leonor vê-se trocada por uma "gaja manhosa" que "passava a vida nos copos no Plateau" e "servia de vazadouro a toda a cidade". A aposta seguinte é Constantine, que acaba por não preencher os requisitos necessários, apesar da sua intrigante abordagem circense à prática sexual, que deixa Leonor a sentir-se ao mesmo tempo "a menina do trapézio sem rede e o palhaço sem graça, sem intervalo para vender gomas e pipocas".
A prima Naná não tem melhor sorte. João, o seu grande amor, morre num desastre de automóvel. A memória é tão dolorosa que a linguagem desfalece em silepses involuntárias: "O João era o tipo de de homem que adivinhou de que tipo de lingerie é que eu gostava" (isto, diga-se, é o tipo de coisa que um tipo faz e deixa qualquer tipa doida). O João lia muito e "falava-lhe de conceitos", dispensando aforismos tão contundentes como "a confusão é o início de uma nova realidade".
Entretanto, uma fotografia precipita a revelação de um segredo, provocando o pânico entre os sinais de pontuação: "A mãe andou com o tio Nuno????". Ainda à procura da montanha no topo do beco sem saída, Leonor veste a sua "camisa de noite curta de seda" e faz o que faria qualquer pessoa racional na sua situação: envolve-se com um "hippie" holandês chamado Thomas. "o que tu precisas é de relaxar um bocado", diz-lhe o perspicaz Thomas, enquanto enrola um charro. Será este "o tal"? Leonor apaixona-se. Naná torce o nariz. Gongas dorme em casa da avó. A tia Joana vai morrendo de "esclerose lateral amiotrófica". Thomas acaba por regressar a Amesterdão, apavorado pelo enredo. 
O tempo passa e o país avança, devagarinho. Acompanhamos a transição democrática, de um tempo em que a PIDE "interrogava pessoas a torto e a direito" até ao pós-25 de Abril, em que "se apregoava a liberdade a torto e a direito". Já nos anos 80, "o dinheiro e o poder cortam cabeças a torto e a direito".
Seria um erro medir Português Suave contra a realidade. O livro é uma fantasia extraterrestre e a acção decorre num universo paralelo em que "a alma viaja à velocidade de um camelo" e a linguagem há muito faleceu, possivelmente de esclerose lateral amiotrófica. Um automóvel destroçado pode assemelhar-se a um "pão de leite"; uma personagem pode ser comparada a uma "almôndega feliz" e uma outra pode mudar de nome no espaço de quatro páginas ; as pessoas podem "comer-se literalmente dentro de um carro", ou "viver literalmente do ar", ou até ficar em casa "literalmente a olhar para ontem".
A vida não é fácil para os leitores de Português Suave. Mas, arrastados pela exuberante vitalidade das protagonistas, lá conseguimos trepar pelo beco sem saída e chegar ao topo da puta da montanha, emergindo gratos e atordoados, como almôndegas felizes, naquele lugar mágico onde o amor triunfa a torto e a direito e o futuro é literalmente feliz. ||


Na caixa ainda se lê:

|| Sei Lá
 No capítulo 5, narrado por Maria Luísa, tia de Leonor, lê-se:"... eu a ir todos os dias a Lisboa para montar a empresa de confecção com o João Paulo - que depois me comprou a cota para vender a empresa a um amigo por cinco vezes o preço" (pág. 48).
O mesmo incidente é posteriormente sujeito a curiosas alterações: "...eu seduzi o João Pedro na casa de banho, com quem depois tive um caso, até ao dia em que descobri que ele tinha comprado a minha cota barata para a vender cara a um palerma qualquer do Porto" (pág. 52).
Mesmo ignorando o soluço sintáctico que sugere que Maria Luísa terá tido um "affair" com uma casa de banho, a segunda passagem instala a dúvida no espírito do leitor. Será a misteriosa transformação de João Paulo em João Pedro uma distracção do revisor ou uma inesperada colagem ao pós-modernismo das identidades instáveis? A dúvida persiste, até porque o leitor nota, com algum desalento, que João Pedro volta a ser João Paulo alguns capítulos mais tarde.||

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